A primeira residência

O primeiro círculo

Sentámo-nos, pela primeira vez, em círculo. Esta viria a ser uma disposição recorrente ao longo de todos os encontros. Igualitária e democrática, como explicou o Filipe, facilitador da música, coloca-nos a todos ao mesmo nível, permite que nos vejamos a todos uns aos outros; traz o foco para quem está no círculo e o que acontece dentro dele, permitindo um esquecer temporário daquilo que está no exterior. 

Quando nos levantámos, surgiram duas imagens: os pés em paralelo como uma linha ferroviária, voltada para o interior do círculo, onde os movimentos migratórios de cada um convergem; os pés bem assentes na terra como raízes, tornando cada um parte deste espaço, desta comunidade, deste território.

Imagens: Carlos Andrés Lopez

Uma respiração comum

Os músicos começaram a andar pela sala, enquanto prestavam atenção ao espaço e uns aos outros, as cores, os padrões, os caminhares, como se tudo fosse um só organismo vivo e em constante movimento.

As interações foram-se tornando cada vez mais intencionais: "estabelecer a conexão através do olhar, e comprometer-se com ela", pediu o Filipe. 

Com este entendimento não verbal já estabelecido, surgiram as palavras. Agora cumprimentavam-se com olás, hellos e abraços, como amigos de longa data. Aqui surgiu uma dimensão teatral e narrativa, mas era também a história deste mesmo grupo, uns capítulos à frente. 

Daqui em diante, começaram a trabalhar para pensar e agir em grupo: caminhar no mesmo ritmo, parar ao mesmo tempo, e retomar em conjunto, assumindo, coletivamente, um ritmo novo, sem que ninguém agisse como líder. Ouviam-se e olhavam-se atentos, procurando uma respiração comum.

Retomaram o círculo. Agora, cada um dizia uma frase simples na sua língua materna, que os outros tentavam reproduzir. Que sonoridades, timbres e ritmos tem cada língua? “O objetivo não é acertar”, disse a Matilde, facilitadora da palavra. “A parte bonita é a tentativa”. Posso aprender a ser o outro através do som? Durante este momento, em que as várias línguas eram inseridas no círculo, lentamente as histórias e culturas de cada um começaram a integrar o grupo. 

A Matilde reparou que todas as frases ditas tinham uma melodia semelhante, um movimento ascendente e descendente. Já se começava a fazer música. 

O que conta um nome

Neste exercício, cada músico dizia o seu nome, que o resto do grupo tinha que repetir, tentando ser fiel à sonoridade, timbre e melodia de cada um. 

O que conta um nome? Escrito no papel, carrega milénios de história, passado, presente e futuro, com todas as suas mutações, variantes, com todos aqueles que, ao longo do tempo, assim se identificaram. 

Danylo. Amanda. 

Dito em voz alta por alguém - alguém que possua esse nome - carrega a história dessa pessoa, desde o berço até hoje, até este círculo. Catarina. Leon. Desde antes: carrega uma árvore genealógica e talvez uma nação. Sina. Marketa. E até depois do círculo, também: carrega sonhos e planos e esperanças e medos, e projeta o interlocutor lá à frente, no futuro onde se imagina.

Ariana. Fazel. 

Repetido em voz alta por quem o ouviu, carrega a história do círculo, uma história partilhada que ainda agora começou, mas que se vai adivinhando neste momento em que a identidade, a música e as narrativas de cada um se encontram neste call and response.  

Cada nome é um passaporte, é a bagagem, é um vagão. 

Reorganização da realidade

Durante um exercício de co-criação, foi definido que os músicos se organizariam com base nas cores dos seus sapatos, divididos entre o branco, o preto e o colorido. Cada grupo assumiria um padrão rítmico diferente.

A criação não nasce no vácuo. É retirada de um contexto. As deixas podem não ser óbvias, mas existem sempre. O trabalho do criador é, na verdade, um trabalho de reorganização da realidade em ficção.

Dialetos

Se a música é de facto uma linguagem universal, como se costuma dizer, há que no entanto reconhecer que dela despoletam inúmeros dialetos. E no momento em que os músicos se dividiram em grupos menores, para trabalhar em pares e trios num exercício de criação, fomos vendo que, ainda que todos fossem fluentes, nem sempre se entendiam. E ainda era cedo, neste primeiro encontro, para deixar a música falar sempre por si. A comunicação verbal erguia algumas barreiras que as cordas, teclas, peles e metais ainda não estavam prontos para derrubar.

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