A terceira residência
10h - Casino Fundanense - Sala de Imprensa
Neste espaço há registos de um tempo em que as memórias não se fixavam tão facilmente. Eram necessárias grandes máquinas para que uma folha pudesse conter um bocadinho de conhecimento, um recorte da comunidade que pudesse chegar a todos.
Este tempo, o nosso, é um tempo em que as memórias se criam, guardam, partilham, e esquecem quase num mesmo instante. Documentamos tudo e não retemos quase nada. Estamos desenraizados.
Estas pessoas juntam-se aqui, agora, para contrariar essa efemeridade, para criar raízes fortes, longas, profundas.
A música também é fugaz, mas o processo deixa marcas que transformam quem passa por ele.
Há que pôr tudo no papel. Há que guardar as provas de que isto tudo é possível, mesmo neste outro tipo de mundo que agora habitamos.
Dois círculos
Há um círculo grande a ocupar metade da sala, onde se trabalha som, ritmo, conexão, comunicação, partilha. Num cantinho, num círculo mais pequeno, falamos sobre documentos, legislações, vistos, comprovativos, declarações.
Sem o círculo menor, o maior não seria possível. Mas sem o círculo maior, o menor não tem razão de ser.
A nossa discussão sobre um decreto de lei é interrompida: “Desculpem, estamos a fazer uma coisa muito difícil, e muito importante, e precisamos de silêncio.”
E apesar de os dois círculos serem, no fim das contas, um círculo só, temos aqui um dilema que atravessa todo este processo.
Quem dirá o que é mais importante, ou mais difícil?
Palimpsestos
O grupo dividiu-se por vários espaços do Casino Fundanense, para trabalhar em núcleos menores. Cada Palimpsesto é um conjunto de conversas, sons, imagens, e observações recolhidos ao andar pelo edifício.
#1
O Danylo percute com o lápis na capa do caderno, e as notas que tomou ganham um som amadeirado.
O teclar da Matilde no computador são intervalos repetidos de segunda maior em cordas de metal.
O acenar da cabeça do Sina tem o som de mãos a cair sobre a pele de um djembé.
O Marinho imprime ritmos no chão e borrifa as cores das suas roupas pelas paredes.
#2
À entrada do Casino, cordas da Ucrânia, Afeganistão, Irão e Guiné-Bissau criam uma paisagem sonora junto a uma máquina de imprensa velha.
No topo da escada ouvem-se os sopros de Portugal, temperados por uma voz checa.
Há um quadro pendurado na parede, no topo da escada, que mostra um cravo vermelho de Abril. É como um portal que liga os sons do andar de baixo aos sons do andar de cima.
Na sala de imprensa os ritmos são definidos pela Irlanda, aliados a um groove russo.
Não falam todos a mesma língua, nem procuram fazê-lo. Mas ninguém que entre neste edifício hoje poderá dizer que não se entendem.
#3
A Matilde e a Aixa conversam:
Deixares-te atravessar transforma-te. Quando vais tocando os sons dos outros, já não és o mesmo.
Há um diálogo entre os instrumentos e as pessoas. Tocamos e somos tocados.
A música não é palpável, mas para fazê-la é preciso contrariar o vácuo do virtual. É preciso contacto com a matéria, pele, madeira, metal, cordas, corpo. Com o que vem de dentro. É preciso olhar nos olhos, respirar em conjunto. É preciso ter calma, tempo, presença. É preciso não ter sempre razão. Ouvir muito.
#4
Viemos todos de tão longe. Que cansaço. Que alegria. Temos tanto para contar. São histórias tão pesadas, tão leves. É uma questão de como contamos, e de quem está a ouvir.
E quem está a ouvir?
Queremos ir tão longe, ainda. Queremos ir de mãos dadas, às vezes. Às vezes queremos ir sozinhos, mas sabendo que temos para onde voltar. Queremos quem nos leve. Queremos levar toda a gente.
Quem vem? Quem ouve?
Jantar e jam no Ananda
À porta do restaurante, depois do jantar, conversamos sobre o lugar de fala; que corpos, que identidades, podem ou devem falar, o que devem dizer, e quando?. Enquanto isso, a jam vai começando lá dentro, e o som da música, cada vez mais alto, convida-nos, um a um, a entrar.
Já somos só dois ou três cá fora, e conversamos agora sobre políticas identitárias. O lugar para onde se caminha, idealmente, é parecido com o que se passa esta noite neste restaurante: um grupo de pessoas vindas de todo o lado, com todas as bagagens, todos os vocabulários, que aqui se entendem numa humanidade e felicidade partilhadas.
Mas o que se passa aqui não é espontâneo. Estas pessoas, este espaço, este tempo, são resultado de muito esforço, muito investimento, muito artifício. E somos só 15. E são só uns dias.
Conversamos sobre políticas pré-figurativas. Quando criamos estas comunidades temporárias, quando nos juntamos em festa, luta, alegria, imaginação, estamos a criar outras possibilidades de futuro. Uma oficina de realidades. Um atalho que não nos leva realmente lá, mas que nos mostra o que devemos procurar. É um oásis, mas o que há em volta ainda é deserto. Não dura, e no entanto levamo-lo connosco para sempre. É partilhável, replicável.
É preciso, ao mesmo tempo, esquecer e lembrar tudo o que está lá fora.